Madrasta, e agora?
- Liliane Sanches
- 7 de out. de 2016
- 3 min de leitura

Eu não estava preparada para ser madrasta. Era uma jovem recém-formada e em processo de pós-graduação, sonhando com os dois pés bem longe do chão, sem saber muito o que fazer da vida. Foi quando conheci o Carlos, meu marido. Me lembro como se fosse ontem nossa primeira conversa. Passamos horas falando do Carlinhos – meu enteado. Me lembro, também, que fiquei encantada com a forma como ele falava de seu filho. Um orgulho que transbordava o peito e me contagiava. Foi duro ouvir seus lamentos por não estar com o filho todos os dias, sei que ele sofria muito por isso.
Começamos a nos relacionar algum tempo depois e decidimos deixar as coisas mais sérias entre nós. Insistimos em não expor o Carlinhos à nossa relação até termos certeza absoluta do nosso comprometimento. Fui clara com ele que ser aceita pelo Carlinhos era condição primordial para o futuro da nossa relação. Num sábado à tarde, início da primavera, Carlos me ligou pedindo para que eu me arrumasse. Ele me buscaria para conhecermos o Matsuri (uma festa japonesa que comemora a primavera). Qual não foi minha surpresa quando abro a porta do carro e vejo na cadeirinha de segurança um menininho lindo, de olhos puxados, me encarando sem entender nada. Tentei minha primeira aproximação o cumprimentando. Fiquei sem respostas. Confesso que isso me deixou com muito medo. Mas respirei fundo, logo entendi que ele deveria estar tão assustado quanto eu. Me calei e respeitei seu espaço.
Chegando no matsuri pude conhecer várias barraquinhas vendendo camisetas, pelúcias e brinquedos de personagens de desenhos japoneses. Eu, por sinal, já era uma grande fã. O Carlinhos se interessou por algumas coisas relacionadas ao desenho Pokemon. Eu observei tudo aquilo e absorvi. Quando sentamos para almoçar, iniciei uma conversa bastante casual com Carlos. “Nossa, eu adoro Pokemon, sabia? Quando era criança eu não perdia um episódio”. Senti aqueles pequenos olhinhos lançando um olhar penetrante em minha direção. Carlinhos me perguntou qual meu personagem favorito do desenho. Eu estava muito tranquila por fora, mas por dentro o meu coração disparava de alegria! Aquilo tudo tinha muito significado para mim. Eu consegui estabelecer uma conexão importante com ele! Algo que realmente fez parte da minha infância e que, agora, fazia parte da infância dele. Foi nesse primeiro diálogo que nós nos encantamos um com o outro. Tivemos a oportunidade de partilhar do mesmo universo.
Algumas horas depois, já no final do dia, quando chegamos na casa de Carlos, eu me sentei no quarto esperando que Carlinhos tomasse seu banho. O banheiro, por sinal, era ao lado deste quarto onde eu estava e eu pude ouvir os dois conversando. “Pai, cadê sua amiga? Eu gostei dela”. Sim, eu chorei. Foi emocionante demais. Algo transbordou em mim e eu não podia conter aquela alegria.
Desde então, eu e Carlinhos estamos construindo uma relação de amor e carinho imprescindíveis para nossas vidas. Ele é um dos meus melhores amigos. Nós compartilhamos opiniões sobre filmes, desenhos, músicas. Ensinamos truques de jogos um ao outro. Dormimos abraçados no sofá algumas vezes. Eu faço cabaninha no meu quarto para ele assistir desenho. E ele me deixa sentar na cadeirinha do seu quarto para pintar com tinta à base de água. Quando ele fica doente, eu não consigo dormir. Verifico a cada meia hora se ele precisa de algo. Tento ensinar para ele os valores de respeito, amizade, carinho e limites.
Às vezes surgem conflitos, porque somos seres humanos muito diferentes, e acabamos nos desentendendo em algumas coisas. Por vezes já me desculpei com ele quando entendi meus equívocos. Por vezes ele já se desculpou comigo por coisas que ele não compreendia que estava fazendo de errado. Nossa honestidade em relação a isso só foi possível porque lá no início nós respeitamos o espaço um do outro.
Desde a primeira vez que nos vimos, entendemos que tínhamos muito mais coisas para compartilhar do que seria possível imaginar. Os conflitos que surgiram não foram suficientes para nos enfraquecer. Ao contrário! É justamente na resolução desses conflitos que nossa relação se fortalece. É na compreensão e no amor que eu posso dizer com absoluta certeza: minha vida não seria a mesma se ele não existisse nela. Meu mundo teria menos cor, menos brincadeiras, menos preocupações – dessas que nos impulsionam, sabe? Ele não nasceu de mim, mas ele fez nascer em mim um amor que me transformou em alguém melhor.
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